Hoje, dia das
mães, as famílias se reúnem para o almoço e os filhos têm obrigação de dar presentes
para suas mães. Não gosto disso. Não acredito em amor com data marcada. É
falso. Você, tímida demais, não gostava de situações em que você fosse o centro
das atenções. Você queria mesmo era ficar escondida. Mas você já partiu.
O Ismael,
depois da sua morte, me disse que sofria pensando em você tão frágil, tão
desprotegida, caminhando sozinha pelos espaços infinitos e solitários do
universo. O que eu queria era poder assentar-me ao seu lado para conversar o
que nunca conversamos. De fato, nós nunca conversamos.
A culpa não foi
minha e não foi sua. Naquele tempo conversas íntimas entre mães e filhos eram
impensáveis. No seu caso era mais grave porque no sobradão colonial do capitão
Evaristo, seu pai, conversas íntimas eram proibidas. Dizer um sentimento era
uma obscenidade.
Capitão Evaristo: capitão só de nome, pois não mandava nada. Quem mandava era o triunvirato feminino, encabeçado pela vovó, que exercia o poder sobre a casa. O capitão era um fantasma. O Ismael, que morou por alguns anos no sobrado, me confidenciou nunca haver presenciado uma única troca de palavras entre o vovô e a vovó. O ódio era muito e infectava a atmosfera. Talvez essa fosse a razão para a proibição da fala sincera.
Lembro-me de um
incidente que me foi relatado por alguém: o vovô foi ao jardim e podou uma
roseira da vovó. Não sei com que intenções ele o fez. Pode ter sido um gesto de
carinho. Mas pode ter sido um gesto de ódio. Ele tinha razões para odiar. Como
não podia falar, podou.
A vovó, sabendo
que o capitão gostava de vinho, se dedicava sadicamente a esvaziar suas
garrafas de vinho na pia. Talvez, com sua tesoura de podar, ele estivesse
cortando os dedos, as orelhas, o nariz da mulher que fazia isso. A vovó, como
vingança pela poda de sua roseira, passou dezessete anos sem ir ao jardim.
Ô, vingança
besta, vingança que só se explica por ódio acumulado. Nos casamentos de
antigamente, casamentos que só a morte separava, era impossível que os ódios
não ficassem fervendo nas panelas. As mulheres fracas aceitavam o seu destino
humilhante em silêncio, dedicavam-se ao crivo, à cozinha, e choravam trancadas
no banheiro.
Mas quando as
mulheres eram fortes, como a vovó, as vinganças eram inevitáveis: ou esvaziando
as garrafas de vinho, ou se recusando a falar, ou salgando a comida, ou
trancando o seu corpo, havendo mesmo casos escabrosos como aquele relatado por
Guimarães Rosa de uma mulher que despejou chumbo derretido dentro do ouvido do
marido, enquanto ele dormia.
Quando eu
contava essas coisas para a minha analista, a Dra. Jujú, ela observava,
assombrada: “Mas professor, isso é muito mais fascinante que Cem anos de
solidão!“. Se eu soubesse escrever novelas, garanto que seriam mais
interessantes que as do Gabriel… Tudo para impedir a intimidade e a
sinceridade: assim era o sobrado.
Entrava-se por
uma porta enorme, que levava a um corredor largo. Ao final, dois lances de
escada que conduziam ao segundo andar. Ao final das escadas, a sala de visitas.
Linda, impecável, forro barroco com frisos dourados, espelhos enormes com
molduras também douradas, um piano Pleyel com castiçais e velas, consoles de
mármore, esculturas, vasos, cadeiras de palhinha, lustres, vidros coloridos
importados na porta de entrada, quatro portas que se abriam para as sacadas que
davam para a praça… Ali ficavam as visitas, segregadas antes de entrar na casa.
Ali se tocava piano e se falava sobre coisas que não fossem íntimas.
Você se lembra
que no sobrado os irmãos jamais se abraçavam, jamais se beijavam. Você lembra
de algum beijo que algum irmão lhe tivesse dado? Eles também só abriam a sala
de visitas. No sobrado as relações eram regidas pelo silêncio. Esse foi o mundo
onde você foi criada. Seria impossível esperar que você tivesse condições para
quebrar as regras que a educação gravou no seu corpo. Assim, nossas relações
também foram marcadas pelo silêncio. Falávamos, sim, mas jamais sobre
intimidades. Jamais lhe fiz uma confidência.
Você não
entenderia, não saberia o que fazer com ela. E você jamais me revelou um
sentimento. Lembro-me que, quando morávamos no Rio de Janeiro, você passava por
períodos de depressão. Mas você jamais se queixou, jamais traduziu sua depressão em palavras. O
seu silêncio fazia de você um enigma a ser decifrado.
Mas agora que
você está encantada, a lei do silêncio foi abolida. E eu gostaria de conversar
sobre seus sonhos e amores secretos. Tenho suspeitas… Aquele seu professor de
piano, jovem maestro italiano, másculo, Riciotti… Você me mostrou um retrato
dele cercado de alunas. Ele me parecia tudo, menos um maestro.
Parecia-me mais
um domador de feras. Pois ele lhe compôs uma valsa quando você completou 15
anos: Ela aos 15 anos… Teria sido uma discreta declaração de amor? Imagino que
ele, para lhe ensinar a posição correta das mãos, pegava nas suas e, ao fazer
isso, aproximava o seu rosto do seu! Que arrepios você deve ter sentido! Mas,
de repente, inexplicavelmente, seus pais a enviaram para Juiz de Fora, como
interna.
Curioso, porque
Lavras possuía uma excelente escola americana, o Colégio Carlota Kemper, bem
defronte ao sobrado. Eu nunca compreendi esse fato. Mas, faz uns dias, tive uma
idéia: vovô e vovó perceberam que um romance estava rolando e eles, de sangue
azul, jamais permitiriam que sua filha se casasse com um maestrinho pobretão
italiano.
Você foi
enviada para Juiz de Fora para ficar longe do Riciotti. Destino parecido teve a
Mema. Apaixonou-se por um plebeu honrado mas o vovô disse não. E quando pai –
qualquer pai – dizia não, o assunto estava encerrado. A Lou Salomé e a
Chiquinha Gonzaga foram excessões.
Minha interpretação
é perversa: a Mema era bonita e o vovô não podia suportar a idéia de um homem
estranho fazendo amor com ela. Impulso pedófilo… A Mema morreu solteirona,
virgem e triste. Quando o vovô estava morrendo ele pediu perdão, mas já era
tarde demais.
Há pedidos de
perdão que são malditos, não deveriam ser feitos. No final das contas você se
casou com o papai, homem bonito e rico, de gostos musicais ingênuos, muito
diferente do Riciotti… Você era música. Poderia ter sido uma concertista.
Lembro-me de você tocando a primeira balada de Chopin… O papai se esforçava mas
não conseguia entrar no seu mundo. Por isso, a parte mais profunda de você
viveu solitária.
Uma memória
feliz que tenho de nós dois: quando ouvíamos música estávamos juntos. A música
dispensa confidências. Lembra-se da felicidade de ir aos concertos matutinos no
Rio de Janeiro, aos domingos? Pois eu queria me assentar com você para
conversar sobre essas coisas, sua vida, seus sentimentos, os seus amores. Sei
que, no seu estado normal, isso seria impossível.
Mas… uma coisa
estranha aconteceu. Quando você já estava velhinha você teve um AVC – e parece
que o tal AVC abriu vários quartos proibidos… Pois você chegou mesmo a falar
“merda“ – palavra que você nunca havia falado – e morreu de dar risada!
É isso que eu
gostaria de fazer hoje: entrar por aquele buraco que o AVC abriu para conhecer
o seu mistério. E então, talvez, pudéssemos andar de mãos dadas, dando risadas…
Antigamente não havia nem almoços e nem presentes. Os que tinham mães usavam
uma flor vermelha na lapela. Os que não tinham mães usavam uma flor branca na
lapela. Hoje usarei uma flor branca.
Mãe,
Gostaria de Conversar Sobre sua Vida, Sonhos, Amores e Sentimentos!
Título original: Um cravo branco na
lapela (Dia das mães)
Autor: Rubem Alves
Blog Saltitando com as Palavras
Tags:
Mãe, florbranca, flor vermelha, vida, amor, sonho, sentimento.
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