Senhor, compra um pacotinho de balas de goma?


Era uma manhã fresca e transparente de primavera. Parei o carro na luz vermelha do semáforo. Olhei para o lado – e lá estava ela, menina, dez anos, não mais. O seu rosto era redondo, corado e sorria para mim. “O senhor compra um pacotinho de balas de goma? Faz tempo que o senhor não compra…” Sorri para ela, dei-lhe uma nota de um real e ela me deu o pacotinho de balas. Ela ficou feliz. Aí a luz ficou verde e eu acelerei o carro, não queria que ela percebesse que meus olhos tinham ficado repentinamente úmidos.

Quando eu era menino, lá na roça, havia uma mata fechada. Os grandes, malvados, para me fazer sofrer, diziam que na mata morava um menino como eu. “Quer ver?”, eles perguntavam. E gritavam: “Ô menino!” E da mata vinha uma voz: “Ô menino!” Eu não sabia que era um eco. E acreditava. Nas noites frias, na cama, eu sofria, pensando no menino, sozinho, na mata escura. Onde estaria dormindo? Teria cobertores? Os seus pais, onde estariam? Será que eles o haviam abandonado? É possível que os pais abandonem os filhos?

Sim, é possível. João e Maria, abandonados sozinhos na floresta. Os seus pais os deixaram lá para serem devorados pelas feras. Diz a estória que eles fizeram isso porque já não tinham mais comida para eles mesmos. Será que os pais, por não terem o que comer, abandonam os filhos? Será por isso que as crianças são vistas frequentemente na floresta vendendo balas de goma?

Será que havia balas de goma na cesta que Chapeuzinho Vermelho levava para a avó? Será que a mãe de Chapeuzinho queria que ela fosse devorada pelo lobo? Essa é a única explicação para o fato de que ela, mãe, enviou a menina sozinha numa floresta onde um lobo estava à espera.

Num dos contos de Andersen uma menininha vendia fósforos de noite na rua (se fosse aqui estaria num semáforo), enquanto a neve caía. Mas ninguém comprava. Ninguém estava precisando de fósforos. Por que uma menininha estaria vendendo fósforos numa noite fria? Não deveria estar em casa, com os pais? Talvez não tivesse pais.

Fico a pensar nas razões que teriam levado Andersen a escolher caixas de fósforos como a coisa que a menininha estava a vender, sem que ninguém comprasse. Acho que é porque uma caixa de fósforos simboliza calor. Dentro de uma caixa de fósforos estão, sob a forma de sonhos, um fogão aceso, uma panela de sopa, um quarto aquecido… Ao pedir que lhe comprassem uma caixa de fósforos numa noite fria a menininha estava pedindo que lhe dessem um lar aquecido.

Lar é um lugar quente. Pois, se você não sabe, consulte o Aurélio. E ele vai lhe dizer que o primeiro sentido de “lar” é “o lugar da cozinha onde se acende o fogo.” De manhã a menininha estava morta na neve, com a caixa de fósforos na mão. Fria. Não encontrou um lar.

Um supermercado é uma celebração de abundância. No estacionamento as famílias enchem os porta-malas dos seus carros com coisas boas de se comer. “Graças a Deus!”, eles dizem.

Do lado de fora, os famintos, que os guardas não deixam entrar. Se entrassem no estacionamento a celebração seria perturbada. “Dona, me dá uns trocados?” O menino estava do lado de fora. Rosto encostado na grade, o braço esticado para dentro do espaço proibido, na direção da mulher. A mulher tirou um real da bolsa e lhe deu. Mas esse gesto não a tranquilizou.

Queria saber um pouco mais sobre o menino. Puxou prosa. “Para que você quer o dinheiro?” perguntou. “Prá voltar prá onde eu durmo.” “E onde é a sua casa?” “Não vou voltar prá casa. Eu não moro em casa. Eu durmo na rua. Fugi da minha casa por causa do meu pai…”

Em muitas estórias o pai é pintado como um gigante horrendo que devora as crianças. Na estória do “João e o pé de feijão” ele é um ogro que mora longe, muito alto, nas nuvens, onde goza sozinho os prazeres da galinha dos ovos de ouro e da harpa encantada. Mãe e filho, lá embaixo, morrem de fome.

Por vezes as crianças estão mais abandonadas com os pais que longe deles. Como aconteceu com a Gata Borralheira. Seu lar estava longe da mãe-madrasta e das irmãs: como uma gata, o borralho do fogão era o único lugar onde encontrava calor.

E comecei a pensar nas crianças que, para comer, fazem ponto nos semáforos, vendendo balas de goma, chocolate bis, biju. Ou distribuindo folhetos… Ah! Os inúteis folhetos que ninguém lê e ninguém quer e que serão amassados e jogados fora. O impulso é fechar o vidro e olhar para a criança com olhar indiferente – como se ela não existisse. Mas eu não aguento. Imagino o sofrimento da criança. Abro o vidro, recebo o papel, agradeço e ainda pergunto o nome. Depois, discretamente, amasso o papel e ponho no lixinho…

E há também os adolescentes que querem limpar o pára-brisa do carro por uma moeda. Já sou amigo da “turma” que trabalha no cruzamento da avenida Brasil com a avenida Orozimbo Maia. Um deles, o Pelé, tem inteligência e humor para ser um “relações públicas”…

Lembro-me de um menino que encontrei no aeroporto de Guarapuava. No seu rosto, mistura de timidez e esperança. “O senhor compra um salgadinho para me ajudar?” Ficamos amigos e depois descobrimos que a mulher para quem ele vendia os salgadinhos o enganava na hora do pagamento…

Um outro, no aeroporto de Viracopos, era engraxate. O pai sofrera um acidente e não podia trabalhar. Tinha de ganhar R$ 20.00. Mas só podia trabalhar enquanto o engraxate adulto, de cadeira cativa, não chegava. Tinha, portanto, de trabalhar rápido. Tivemos um longa conversa sobre a vida que me deixou encantado com o seu caráter e inteligência – ao ponto de ele delicadamente me repreender por um juízo descuidado que emiti, pelo que me desculpei.

E me lembrei das meninas e meninos ainda mais abandonados que nada têm para vender e que, à noitinha, nos semáforos (onde serão suas casas?), pedem uma moedinha…

Houve uma autoridade que determinou que as crianças fossem retiradas da rua e devolvidas aos seus lares. Ela não sabia que, se as crianças estão nas ruas, é porque as ruas são o seu lar. Nos semáforos, de vez em quando, elas encontram olhares amigos.

Os especialistas no assunto já me disseram que não se deve ajudar pessoas nos semáforos, pois isso é incentivar a malandragem e a mendicância. Mas me diga: o que vou dizer àquela criança que me olha e pede: “Compre, por favor…”? Vou lhe dizer que já contribuo para uma instituição legalmente credenciada? Me diga: o que é que eu faço com o olhar dela?

Minhas divagações me fizeram voltar ao Irmãos Karamazóvi, de Dostoiévski. Um dos seus trechos mais pungentes é uma descrição que faz Ivan, ateu, a seu irmão Alioscha, monge, da crueldade de um pai e uma mãe para com a sua filhinha. “Espancavam-na, chicoteavam-na, espisoteavam-na, sem mesmo saber por que o faziam.

O pobre corpinho vivia coberto de equimoses. Chegaram depois aos requintes supremos: durante um frio glacial, encerraram-na a noite inteira na privada sob o pretexto de que a pequena não pedia para se levantar à noite (como se um criança de cinco anos, dormindo o seu sono de anjo, pudesse sempre pedir a tempo para sair!). Como castigo, maculavam-lhe o rosto com os próprios excrementos e a obrigavam a comê-los. E era a mãe que fazia isso – a mãe!

Imagina essa criaturinha, incapaz de compreender o que lhe acontecia, e que no frio, na escuridão e no mau cheiro, bate com os punhos minúsculos no peito, e chora lágrimas de sangue, inocentes e mansas, pedindo a ‘Deus que a acuda’. Todo o universo do conhecimento não vale o pranto dessa criança suplicando a ajuda de Deus.”

Num parágrafo mais tranquilo o starets Zossima medita “Passas por uma criancinha: passas irritado, com más palavras na boca, a alma cheia de cólera; talvez tu próprio não avistasses aquela criança; mas ela te viu, e quem sabe se tua imagem ímpia e feia não se gravou no seu coração indefeso! Talvez o ignores, mas quem sabe se já disseminaste na sua alminha uma semente má que germinará! Meus amigos: pedi a Deus alegria! Sede alegres com as crianças, como os pássaros do céu.”

Quando essas imagens começaram a aparecer na minha imaginação comecei a ouvir (essas músicas que ficam tocando, tocando, na cabeça…) sem que a tivesse chamado aquela canção “Gente humilde”, letra do Vinícius, música do Chico. “Tem certos dias em que eu penso em minha gente e sinto assim todo o meu peito se apertar…”

Pelo meio o Vinícius conta da sua comoção ao ver “as casas simples com cadeiras nas calçadas e na fachada escrito em cima que é um lar”. Termina, então, dizendo: “E aí me dá uma tristeza no meu peito feito um despeito de eu não ter como lutar. E eu que não creio peço a Deus por minha gente. É gente humilde. Que vontade de chorar.”

Se fosse hoje o Vinícius não teria vontade de chorar. Ele riria de felicidade ao ver as cadeiras nas calçadas e as fachadas escrito em cima que é um lar… Vontade de chorar ele teria vendo essa multidão de crianças abandonadas, entregues ou à indiferença ou à maldade dos adultos: “E aí me dá uma tristeza no meu peito feito um despeito de eu não saber como lutar…” Só me restam meu inútil sorriso, minhas inúteis palavras, meu inútil Real por um pacotinho de balas de goma…

Título original:
Que Vontade De Chorar — Rubem Alves

Tags: