A Mala Nossa de Cada Dia


Todos nós temos A Mala Nossa de cada dia, com alça ou sem alça, com rodinha ou sem rodinha, grande, média, pequena e até temos modelos práticos que tem um  zíper extra que pode aumentar o espaço, para que possamos entulhar todas as nossas coisas — boas ou ruins  — afinal a Mala é nossa! 

Entretanto, se tudo guardássemos em nossa mala — alegria, felicidade, amor, conquistas, saúde, mas, também  tristezas, mágoas, injúrias, traições, lágrimas, frustrações, decepções e mentiras — em pouco tempo ela se tornaria pequena demais  e seria quase impossível lembrar o que ali guardamos, sem contar que teríamos medo de abri-la, não só pelo fato de que não conseguiríamos por tudo de volta,  como também,  não gostaríamos de tomar conhecimento do que ali guardamos.

O fato é de que chega um dia em que nossa Mala está tão pesada que já não conseguimos carregá-la, assim,  não tem jeito, temos que abri-la, afinal,  a Mala é nossa.

Temos que limpá-la, lustrá-la e pelo sim, pelo não, somos obrigados a reavaliar, peça por peça, ou seja, separar o “joio do trigo”, só assim, conseguiremos fechar e levá-la conosco aonde quer que seja. 

Dá trabalho?  Muito, mas vale  a pena! O fato é que depois dessa “limpeza” A Mala Nossa de Cada Dia, embora, muitas vezes, desbotada, já sem alças e com uma só rodinha, torna-se mais  fácil de carregar e já não nos sobressaltamos ao abri-la, pois constatamos que sempre haverá um espaço — que nem coração de mãe, sempre cabe mais um   para guardar as coisas que nos fazem sorrir — as coisas boas da vida.

Para refletir,  leia o texto Reply de Tati Bernardi

Imagine que tenho uma mala muito pesada com um milhão de moedas de ouro. As alças ficam penduradas no meu pescoço, me forçando a cabeça pra baixo, retesando os músculos do olhar pra frente.

Vez ou outra, uma pessoa da rua passa e tenta me roubar. Mas, por mais que esteja tão pesado e doendo e estragando a minha coluna, luto até a morte pra proteger a tal da mala.

Automaticamente me atiro contra o chão, como se protegesse um filho das balas. São terríveis esses quilos centralizados no ponto mais fraco do meu corpo, mas pra violência a gente não entrega nem os fardos. 

Dai, também, às vezes, uma pessoa da rua se oferece pra carregar a mala pra mim. Ou pra guardar em sua casa. Ou pra dividir o peso ao estilo “uma mão em cada alça”.

Também não consigo entregar meu arqueamento e tamanho para essas pessoas. O amor gentil nunca me conquistou.

Gentileza é coisa pra quem nunca será íntimo. Solidariedade é coisa pra campanha política. Felicidade é pra quem se conforma em ficar num lugar só porque está bom.

Mas muito de vez em quando, como aconteceu com a gente, aparece uma     pessoa que não me pede nada e pra quem eu tenho vontade de entregar cada moeda da minha mala com um milhão de moedas de ouro. Tome, leve, gaste, use, encha a sua banheira com elas e depois me mande uma foto.

Eu sou uma mendiga ao contrário. Eu ando pelo mundo implorando pra que alguém aceite a minha riqueza. Fico sentada no chão, tocando meu instrumento, com um chapéu imenso e lotado. E a plaquinha “por favor, não me ajude”. Muitas pessoas passam, mas pra poucas me levanto.

Posso ficar horas tentando te explicar. Você tem um resto perdido e solitário de sobrancelha ao lado da sobrancelha esquerda. Você tem pequenos buracos entre os dentes de baixo.

Você molha o lábio com a língua ainda mais seca que seus lábios, quando está nervoso. Você joga seu maxilar inferior pra frente quando a risada é de deboche. Você joga o seu maxilar superior pra frente quando a risada é de timidez.

Você atravessou a rua com as mãos congeladas dentro do bolso. Você pede perdão pela sua parte playboy com a doçura e a sinceridade de um poeta descalço. Você me convida pra almoçar no restaurante onde terminamos e, porque sabe ser piadista exatamente do jeito que combina comigo, explica detalhadamente onde é o lugar como se eu não lembrasse dele todos os dias.

Eu vejo a palavra “reply” no meu celular e, só porque tem a letra “y”, a letra mais forte do seu sobrenome, sinto de leve um chutinho atrás dos meus joelhos. Eu poderia ficar horas te explicando por que eu acho que é amor.

Você outro dia fez o exercício contrário. Ficou tentando me explicar por que não é amor. Falou da minha amargura verborrágica, das minhas fases com remédios que causam anorgasmia, do quanto odiava quando eu tentava extrair mais e mais e mais do seu peito protegido pelas várias jaquetinhas modernas que parecem paletozinhos mas têm zíper e, por fim, disse que apesar de não simpatizar com elas, prefere as meninas que te fazem sentir de férias em um spa relaxante.

Não são por essas coisas que não se ama. Não são por essas coisas que se ama. Essas são apenas as coisas sobre as quais conseguimos falar na nossa ânsia de ocupar a cabeça enquanto nos encaramos um pouco assustados.

A verdade é que, no meio da multidão, estamos carregando nossas malas pesadas de riquezas e belezas e sentimentos. E uma hora, só porque acontece e não se pode explicar sem parecer ingênuo e arrogante, escolhemos uma pessoa que nos leve.
Eu sei que é amor porque eu te escolhi pra me levar e, mesmo você não tendo aceitado, eu fui.

Eu te vi atravessando a rua com as mãos frias dentro da “jaquetinha paletó que tem zíper” e fui lançada sem tempo de pena. Você não sabe, você não vê, você não quer, você não se importa. Mas, no último segundo do sinal fechado, eu abri a janela do meu carro e joguei a mala com milhões de moedas de ouro.

A mala não te atingiu, caiu meio metro antes do seu último passo. Nem o som do meu peito desmoronado, nem o cheiro do meu amor metalizado, nem a luz da minha devoção dourada. A mala espatifou no meio da avenida caótica pela chuva e pela véspera do feriado.

Os famintos, os entediados, os pobre-ninguéns, os todos-os-outros, se engalfinharam pra tirar proveito do amor que, lançado ao homem sem mãos aparentes, agora ficou esparramado, exposto e restante no asfalto, como um resto de feira reluzente.

A Mala Nossa de Cada Dia
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