“Mas
ainda há sonhos… E em cada sonho há um barco,
uma praia, uma estrela. Em cada sonho há um pássaro que saúda o sol com uma canção desconhecida.
E não há ouro que valha essa canção e não há rei que a
cale…”
Trecho da crônica de Liberato Vieira
da Cunha — O Código do Coração — que faz parte do livro Um hóspede na Sacada, 1985, e que fala sobre
“um inquieto coração” que no silêncio da noite dialoga, em forma de
código, com o poeta. Vale a pena ler, reler e refletir!
Vêm dias em que nos sentimos frágeis
brinquedos de forças que não compreendemos. Alguém nos fere com um gesto, uma
palavra. Uma peça qualquer deste confuso universo urbano que nos aprisiona
cessa de funcionar.
Um velho projeto parece de repente irrealizável. Alguém que prezamos parte sem aviso. Ou então, mais simplesmente, um vago, intruso desalento vem nos fazer companhia e nos põe de mal com o mundo.
Um velho projeto parece de repente irrealizável. Alguém que prezamos parte sem aviso. Ou então, mais simplesmente, um vago, intruso desalento vem nos fazer companhia e nos põe de mal com o mundo.
Não há receitas prontas para
enfrentar nada disso. Os poetas românticos costumavam compor belos versos em
homenagem à tristeza. Mais prática, a humanidade de agora deita-se no divã dos
analistas e compõe longos monólogos de solidão e nudez.
Quanto a mim, não faço versos e meu
único analista é este inquieto coração que no silêncio da noite me fala coisas
em código.
— Por que não vês as estrelas? -
pergunta-me o coração.
Por que não contemplas sua lenta
caligrafia de luz e seu tímido pulsar e seus mistérios, que fazem ínfimos todos
os pesares?
• Pouco sei de estrelas – respondo.
• Pouco sei de estrelas – respondo.
Já não as vejo, ocultas que andam
pelo clarão artificial desta cidade, perdidas que estão nesta névoa letal que
respiramos.
— Por que não te exilas da cidade? -
pergunta-me o coração.
Por que não buscas a árvore que
plantaste, o pássaro que viste pousar em seus ramos aquela manhã e que saudou o
sol com um canto que desconhecias?
• Não
posso deixar a cidade – respondo.
Sou parceiro de um estranho jogo de sobrevivência. Deram-me as cartas, devo armar as sequências à espera do rei de ouros.
Sou parceiro de um estranho jogo de sobrevivência. Deram-me as cartas, devo armar as sequências à espera do rei de ouros.
— Por que não desprezas o rei, por
que não rejeitas o ouro? - pergunta-me o coração.
Por que não voltas despojado àquela
praia onde aprendeste o exercício da liberdade?
• Porque distante ficou aquela praia
e já duvido que ainda exista aquele mar. E já não creio que partam os saveiros
tocados pela brisa da armação e com eles os navegantes embriagados da incerteza
móvel de seus destinos.
— E por que não soltas as amarras de
teu destino? - pergunta-me o coração.
Por que não largas teu leme pelo curso vário de teus sonhos?
• Não
há barcos, não há praias, não há estrelas – respondo.
Perdi-os
em algum lugar do passado mais-que-perfeito.
—
Mas ainda há sonhos – diz-me então o coração.
E em cada sonho há um barco, uma
praia, uma estrela. Em cada sonho há um pássaro que saúda o sol com uma canção
desconhecida. E não há ouro que valha essa canção e não há rei que a cale.
Pois que está nos livros que somos feitos de argila e sonho. E que lentamente a sucessão dos anos submete a argila como o vento faz curvar-se a árvore que plantaste. Mas força alguma pode dobrar o sonho.
Pois que está nos livros que somos feitos de argila e sonho. E que lentamente a sucessão dos anos submete a argila como o vento faz curvar-se a árvore que plantaste. Mas força alguma pode dobrar o sonho.
O Código do Coração
Fonte: Crônica de Liberato Vieira da Cunha, livro Um hóspede
na Sacada, 1985 Blog Saltitando com as Palavras
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